A criação, sem dúvida, tem suas raízes nas antigas crenças mesopotâmicas, mesmo que haja algumas divergências entre os estudiosos sobre os detalhes. Mas o consenso geral é que a tradição da criação mesopotâmica teve uma grande influência sobre essas narrativas. O autor, por exemplo, claramente conhecia mitos como o Enuma Elish, que conta histórias selvagens de como os deuses e o mundo surgiram. Nessa visão, os deuses ainda não existiam de fato, nem tinham nomes, e estavam formados das águas caóticas dos monstros marinhos Apsu e Tiamat. Eles cresceram e se organizaram no meio desse caos.
1 | No princípio, Deus criou os céus e a terra. |
2 | A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. |
Um dos momentos mais intensos dessa história é quando Marduque derrota Tiamat e cria o mundo a partir de seu próprio corpo. E se a gente olhar com cuidado, dá pra perceber que Enuma Elish e Gênesis 1 têm uma estrutura bem parecida, com uma cláusula temporal que depende de outra para fazer sentido. Isso indica que o autor do Gênesis sabia sobre as antigas tradições babilônicas da criação. Ele percebeu que era necessário criar uma história com um personagem central, uma espécie de “herói” da criação, e com um caos primordial que existia antes da própria criação.
Essas ideias, de certo modo, se conectam com as crenças centrais do autor jahwista, onde Yahweh é descrito como o criador de tudo. Mas, mais importante ainda, elas estavam dentro da mesma tradição que estava sendo seguida na época. O narrador jahwista, com raízes em Canaã, traz uma perspectiva diferente das narrativas mesopotâmicas, talvez até influenciado pelas mesmas, mas de uma maneira que ressoava mais com sua cultura e sua visão de mundo. Naquele período, era bastante provável que o autor tivesse vivido na Babilônia, e seu desejo de se conectar com suas origens mesopotâmicas fazia todo sentido.
A história de Apsu, que tenta matar os deuses, mas é destruído pelo deus sábio EA, que cria Marduque a partir dos restos de Apsu, leva a uma luta épica entre Marduque e Tiamat. Ao matar Tiamat, Marduque cria o mundo a partir de seu próprio corpo. No entanto, a criação descrita no Gênesis, mesmo com toda essa inspiração babilônica, tem uma proposta diferente. O autor, embora imerso na tradição mesopotâmica, se distancia da visão politeísta de Enuma Elish, criando uma narrativa monoteísta que se coloca como uma versão mais elevada e intelectualmente superior dessa história da criação.
Esse trabalho foi produzido em um contexto de exílio, quando o povo judeu precisava de uma história de criação que não só fosse capaz de competir com as mitologias babilônicas, mas que também oferecesse uma alternativa ideológica e teológica muito mais forte e convincente.
Bibliografia:
- The Mythological Features in Genesis Chapter I and the Author’s Intentions (Arvid S. Kapelrud)